domingo, 26 de agosto de 2007

Amansável?

Pois o homem era sempre um fim de tarde, uma saudade. "Eu te amanso, cadelinha." - e ela se lembrava sem pudor desses sussurros apertados dele, nem ruborizava de lembranças. Ele sussurrava, apertava, sussurrava, apertava, a chuva era a mesma lá fora e ela, Estela, em meio a apertos e sussurros experimentava a pressa sem jeito mas deliciosa, amava sem saber ao certo como dividir seu amor: como é que divide um amor em dois (parte pra mim, parte pra você...)? Amansava Estela, Estela amansava: mas não era mansidão, era desejo. O amor era o primeiro, a idade nem era tão pouca: Estela começou tarde, dizia, nem mais tão adolescente era, também não era crescida. A chuva era a mesma lá fora e ele se virou de lado, a respiração viva e ele semi-morto. Estela percebeu, então, sem muito medo e quase sem notar a tão nova descoberta: sempre haveria de pensar, sonhar em segredo, guardar amargos os ciúmes e doces as brincadeiras. Não viria tão cedo - talvez jamais chegasse - a companhia: de fato, a companhia. Viriam, sim, os corpos, as palavras, as saudades. As respirações. Cada nudez a deixaria sempre um pouco tonta. E, ao final, de tudo: a paz. O descanso. De virar de lado na solidão eterna. Mas um dia, sentiria mãos mais quentes, sabia: "Não te amansarei jamais, meu bem." - diria o outro, o novo, pálido de ciúme guardado e de amor demais. Certo de ser o homem de Estela, tão dela. Até amanhã, ou depois.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Da carne

Mas também as mulheres amam corpos, e Estela é uma das primeiras a me dizer algo assim. Estela está tão longe de ser etérea que sua solidez chega a me dar medo: nenhuma criatura real pode ser tão palpável e ter coxas tão vivas. Mas Estela é morena e ama um homem, agora eu sei: ela me contou que ama um homem que tem um corpo, um corpo que fragiliza suas coxas, delicia sua língua e bagunça seus cabelos, ela me contou que ama um homem que invade seus ouvidos com vozes infinitas e que é tão real quanto a madeira da mesa da sala, tão real quanto o vento e os tigres e a doçura quente do café que ela faz bem cedo. Estela porta a dor de um corpo e essa é toda a dor de ser bicho. E recebe outros tantos corpos porque sente pavor das manhãs doces, porque teme a brisa da tarde e a velhice já esperada de seu homem. Teme, acima de tudo, amar um corpo que definha - morre de medo de adorar quando tudo no mundo começar a repousar. Estela teme que o coração sossegue e que o trabalho de seu ventre cesse. Teme a despedida do amor, as tardes vazias. Despede-se, então, da voz corpórea de seu homem antes que ele tenha vontade de ir embora de fato. Recebe outros corpos em seu corpo. E me conta assim, sólida e risonha. Estela me faz uma inveja. Ou uma ternura.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Carbono e pecados

Não é outra coisa além disso: o amor dos fracos. Eu poderia inventar mil outros nomes e infinitas outras explicações, mas tudo isso é exatamente onde a ternura fraqueja, balbucia segredos lindos e vontade infinita de "pra sempre". Então ela escolhe a traição. Eu digo "ela", porque falar "dela" é sempre mais fácil do que falar de mim. "Ela" se chama agora Estela, acabou de ganhar um contorno nada delicado e infinitamente bronzeado: Estela está totalmente tomada de fogo e sol. Conhece algumas melodias, entende de carros, sabe de coisas que meninas geralmente desconhecem - porque não faço de Estela uma mulher comum. Aliás, é uma mentira agora o que acabo de contar: ela, feita de minha imaginação, também nasceu de carbono e pecados - porque tenho resquícios cristãos em minhas veias. E Estela, ah, Estela é uma tola, esta é a verdade. Eu poderia ser mais gentil, mas não quero. Acordei hoje sem muita gentileza e incapaz de carinho e, assim sendo, nada digo além da fraqueza dela. O último homem não tinha nome, ou acho que ela mal se lembra do nome. Não, eu não a julgo. Ou não a julgaria, se não soubesse a fundo tudo o que a levou a se meter exatamente com essas coisas assim: amores breves, alguns brutos, outros insossos, depois a cama quente e abandonada, e ela representando ardentemente o papel de mulher ardente, não tão bela mas de atrativos indiscutíveis, indiferente e viva, de tanta astúcia e nenhuma serenidade. Não, eu não a julgo. Ou eu a julgo, sim, porque sou das mais péssimas e tento agora inventar motivos ocultos para a liberdade ativa e para o prazer vivo de Estela. Acontece que, antes de inventá-la, eu havia inventado a ternura, começado a crer no amor e a serenizar em meio a ilusões comuns a todas as moças que esperam no portão. Então Estela nasceu aqui dentro, feito tempestade e se fez toda em mim como se quisesse me ensinar sua força. Ou o amor dos fracos.

De que é feita Estela, além de carbono e dos pecados meus?

domingo, 12 de agosto de 2007

"Memórias de minhas putas tristes"

Ao homem do silêncio,

Quero contar como andam as sensações. Repara que escrevo sob a luz de muitas velas e aguardo docemente a chegada do próximo: dar-me-á um anel de rubi lindíssimo e contará coisas do passado. Eu nasci para isso, meu caro: para fazer bem aos desejos dos homens. Mais tarde, eles voltam para seus lares e lá são felizes sob o tédio do amor e do teto. Eles vêm a mim, que sou chuva quente, molham-se felizes feito meninos pulando em poças d´água e em meu ventre fazem todo o estrago que não ousam fazer em seus mundos. Pobres moços.

Eu, quando menina, brincava na chuva em poças lamacentas e era uma delícia abandonar meu teto para me lambuzar lá fora. À noitinha, para não adoecer demais, voltava feliz feito um passarinho e alegremente levava bronca de minha tia, tomava meu banho e ia pra cama. Eu tinha um cobertor delicioso e agora tenho mãos ágeis na escrita que se alegram ao escrever a ti, meu amigo. Desenho toda a vida para que se passe diante dos teus olhos, e só faço isso porque és um bom homem: dos melhores. É por pudor e por carinho que não ofereço a ti o que ofereço aos outros: nasceste para o amor e para ouvir melodias vindas do céu. Eu, ah, eu sou lá de baixo: perdoa-me se digo assim tão feio. Mas, sim, sou do vermelho ardente que corre lá embaixo, sou mais baixa que o poço mais fundo e conheço todas as cores do fogo. Cada cor tem um nome que eu crio, tal e qual as tonalidades de branco para quem conhece o colorido da neve.

Vejo-te em teu silêncio e sei que teu fogo é rubi, é um fogo nobre que aguarda uma fada. Fadas nem sempre surgem, são como unicórnios: feitas de lendas e sonhos. Caso surja, porém, quero que saibas que sou sempre feliz por ti e grata pela tua atenção. E festejarei tua felicidade como se Deus estivesse me perdoando até o infinito de meus pecados.

Sê feliz, mais que o mundo.

Maria Eunice

terça-feira, 7 de agosto de 2007

A bruxa

Porque foi nas pequenezas que ela se inventou mulher, e pequenamente se alimentou de ciúmes doentes e de vitórias mesquinhas: ganhou um beijo, um prêmio, a medalha na escola, o sorriso mais lindo do mundo, aprendeu a fazer crochê e a se despir bem devagar com ares de pouco caso.
Desde então, mulher pronta que era, amou direitinho e exigiu amor como uma canibal que deseja do outro a carne, o sangue e os ossos moídos. E moía os ossos, mas bem de mansinho, como se fizesse carícias e como se sentisse dor. Moendo, pedia um anel e massagens nos pés , bebia o sangue e delicadamente temperava a carne com suor, lágrimas e gozo. Ardendo, levava-o ao fogo e pedia que esfriasse um pouco, regava com choro os dias felizes e amargava na língua um gosto de morte. Rogava a Deus eternidade; ao demônio, pedia domínio. E, vestida de anjo, dominava e amava num fogo eterno, devorando para sempre a carne, o sangue e os ossos que já se tornavam pó.
As bruxas dos contos de fadas sempre foram de comer criancinhas e de maltratar donzelas. A minha era uma donzela infantil que inventava feitiços pra devorar um homem. Em chamas cintilantes de fada.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

A desenhista

A dificuldade se dá quando a mulher se põe a desenhar o homem. Vê-se, assim, a fantasia abandonando o espelho e inventando formas outras. Formas quentes? Ponho-me silenciosa agora: sei de coxas, cintura, seios e delicadeza. E sei de pêlos que douram em poesias antigas feitas para damas sublimes. Acontece que hoje não sou dama sublime: sou a agonia de todo o feminino primitivo que escorre de mim e que escorrerá pra sempre mesmo na velhice, mesmo na feiúra, mesmo na tristeza, mesmo quando se forem o viço e o riso, e amém. Sou hoje quem olha e se coloca na árdua tarefa de desenhar o homem: porque ele tem formas de contenção e força e movimentos de avidez infantil. Ele se desenha no silêncio da distância e provoca amor porque tem um corpo que exige. Eu amo um corpo que exige como quem ama a natureza em sua forma mais simples. Desfaço-me da sofisticação que o feminino inventa e me apego à beleza viril que não me cabe, jamais caberá. Amo os detalhes e o todo e sei que mesmo depois de velha meus olhos ainda brilharão. É de saber que mesmo na velhice os olhos ainda são de mulher que eu estremeço toda, de medo do futuro. E me esqueço, mais uma vez, de completar o desenho.