segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Enjaulada

Acabou. Porque a fêmea de olhos lúcidos só tinha calor no quarto, toda feita de sol. Era mulher pra compartimentos e, compartimentada, fazia-se bicho. Bichinho feliz, bichinho que ria e brilhava. Aprisionada, alegrava-se pra provocar agonias e coisas deliciosas, num cantinho perfeito pra gritar demais. Aprisionada, libertava-se de si.

Acabou Estela, que aqui fora se sentia atada, entregava o suor pra inutilidades porque precisava alimentar o quarto, a casa e o corpo. Aqui fora, ou era burocrática, ou era sozinha. E nada disso era melhor que estar acompanhada e ilógica lá dentro, guardada como um presente dos céus. Guardada feito fêmea louca, lúcida, livre, enjaulada. A loucura mais simples só é liberta em jaulas. E Estela queria mesmo era ser tomada com vigor. Menina de colo que era.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Rastreando

Estela conhecia os rastros dele: cheiravam a qualquer coisa misteriosa que deixava saudades antecipadas. Estela já havia sido menina e, na timidez de existir, já havia guardado no coração todos aqueles gritos que a sufocavam ventre abaixo. Era de não apagar completamente a menina que Estela ainda conseguia fazer chover em segredo no quarto: e chovia cinza. E, quando se esquecia de que o puro e simples balanço de quadris era sexo vivo, agarrava-se às imagens da TV e suspirava sozinha por não ter vida de filme e corpo de estrela. Eu caminharia ao lado de Estela pra contar a ela aquilo que foi esquecido, mas isso não adiantaria: em dias assim, Estela é menina e mulher no sentido duro e opaco do termos - e se veste de flores pra esconder a carne. E naquele dia aspirava os odores da poeira dele, precisava dele, de flores e de chuva fina. Cabia perfeitinha num colo feito pra dormir.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Da outra

Seria bem possível dizer o seguinte: ela o amava. Estela entortava-se toda tentando tornar sua beleza mais incomparável, oferecia as mãos e as papilas - e degustava, degustava, degustava. Sei que eu não a deveria ter conhecido tão bem - era preferível antes, quando ela aparecia toda firme e praticamente nascida para os gritos e para o amor. Acontece, no entanto, que ela me veio esses dias contando segredos de mulherzinha. Segredos de mulherzinha, sabe como é? De falar de amor baixinho, ter inveja dos cabelos mais delicados da outra e sentir ciúmes da parte dele que desejaria um anjo. "A outra" - Estela me falava baixinho - "eu nem sei se existe." Mas que dançava nos sonhos dela, ah, dançava. Estela amava a outra dançante ao infinito - e como era casta a dança -, delirava perdida nos cabelos dela e jurava, então, que tomaria aquela delicadeza toda para si. Devoraria a outra. Porque Estela bem sabia: ciúme não é ódio, é amor. E, de amar a tal moça, dava-lhe um nome e mil segredos lindos. De amá-la, imaginava-a incapaz de errar o ponto do arroz e chorar sem motivos. Seria bem possível dizer o seguinte: Estela o amava, e amava a idéia de que ele desejasse a outra. Amava tanto que se fez a outra, buscou mais delicadeza nos cabelos e nos gestos, fez um silêncio e se reinventou uma dama. Estela não é exatamente a mesma de antes. Mas ainda seduz. Ainda grita. Ainda canta.

sábado, 8 de setembro de 2007

Dos galopes

Pois na cortina desenhavam-se os gritos de Estela, gritos galopantes, arfantes, gritos janela afora, cidade adentro, estilhaçando ouvidos entediados de tardes comuns, ecoando desejos de adoráveis meninas honradas que também almejavam fazer amor à tarde espalhando impurezas doces pelo ar cinzento. Estela era a mulher sonhada pelas moças de fitas vermelhas, fêmeas delicadas e vorazes que guardavam em si cores de verão e cheiros de orquídeas, era um urro de amor e fantasia, Estela era vida, e era amante, e pedia ao seu homem mais um pouco de pecado, mais um pouco de santidade - não porque acreditasse em pecado ou em santidade, mas porque, primitiva que era, adorava brincar com as invenções modernas, e brincava toda cheia de pureza e alegria, toda plena de carne e vigor. Estela, as moças de fita vermelha e o silenciar brutal das vozes muito humanas: porque era uma tarde quente feita para que os gritos proibidos rachassem os pudores e inventassem o amor.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Estilhaços

Estela faz estilhaços. O que são estilhaços? Estilhaços são coisas que Estela faz às quatro horas da manhã. "O amor é quando a gente se encosta e pensa que vai morrer?" - pergunta ela, e todo seu corpo é sempre prestes a morrer. No dele. Acontece que há uma vida diferente e um segredo, há a delicadeza de compreender a velhice tão antes, Estela compreende as coisas antes. E, antes mesmo de ser mulher, já treinava os passos - não no óbvio de usar salto alto da mãe, mas na fluidez perigosa dos sonhos, na imaginação da entrega, num certo horror inexplicável. Era um horror inexplicável ter nascido para ser fêmea, e Estela era mulher e fêmea e era também aquela criatura assustada que compreendia a velhice bem antes. Sussurrava a dor dos outros e estilhaçava de madrugada. Guardava a sensibilidade viva de uma menina comum. Mas, enquanto ele ainda estava ali, era fêmea em amor e carne, e tinha o mesmo olhar sem compaixão - aquela coisa terrível que era o olhar de quem não ama. Acontece, no entanto, que amava.

Ama e faz estilhaços.

domingo, 26 de agosto de 2007

Amansável?

Pois o homem era sempre um fim de tarde, uma saudade. "Eu te amanso, cadelinha." - e ela se lembrava sem pudor desses sussurros apertados dele, nem ruborizava de lembranças. Ele sussurrava, apertava, sussurrava, apertava, a chuva era a mesma lá fora e ela, Estela, em meio a apertos e sussurros experimentava a pressa sem jeito mas deliciosa, amava sem saber ao certo como dividir seu amor: como é que divide um amor em dois (parte pra mim, parte pra você...)? Amansava Estela, Estela amansava: mas não era mansidão, era desejo. O amor era o primeiro, a idade nem era tão pouca: Estela começou tarde, dizia, nem mais tão adolescente era, também não era crescida. A chuva era a mesma lá fora e ele se virou de lado, a respiração viva e ele semi-morto. Estela percebeu, então, sem muito medo e quase sem notar a tão nova descoberta: sempre haveria de pensar, sonhar em segredo, guardar amargos os ciúmes e doces as brincadeiras. Não viria tão cedo - talvez jamais chegasse - a companhia: de fato, a companhia. Viriam, sim, os corpos, as palavras, as saudades. As respirações. Cada nudez a deixaria sempre um pouco tonta. E, ao final, de tudo: a paz. O descanso. De virar de lado na solidão eterna. Mas um dia, sentiria mãos mais quentes, sabia: "Não te amansarei jamais, meu bem." - diria o outro, o novo, pálido de ciúme guardado e de amor demais. Certo de ser o homem de Estela, tão dela. Até amanhã, ou depois.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Da carne

Mas também as mulheres amam corpos, e Estela é uma das primeiras a me dizer algo assim. Estela está tão longe de ser etérea que sua solidez chega a me dar medo: nenhuma criatura real pode ser tão palpável e ter coxas tão vivas. Mas Estela é morena e ama um homem, agora eu sei: ela me contou que ama um homem que tem um corpo, um corpo que fragiliza suas coxas, delicia sua língua e bagunça seus cabelos, ela me contou que ama um homem que invade seus ouvidos com vozes infinitas e que é tão real quanto a madeira da mesa da sala, tão real quanto o vento e os tigres e a doçura quente do café que ela faz bem cedo. Estela porta a dor de um corpo e essa é toda a dor de ser bicho. E recebe outros tantos corpos porque sente pavor das manhãs doces, porque teme a brisa da tarde e a velhice já esperada de seu homem. Teme, acima de tudo, amar um corpo que definha - morre de medo de adorar quando tudo no mundo começar a repousar. Estela teme que o coração sossegue e que o trabalho de seu ventre cesse. Teme a despedida do amor, as tardes vazias. Despede-se, então, da voz corpórea de seu homem antes que ele tenha vontade de ir embora de fato. Recebe outros corpos em seu corpo. E me conta assim, sólida e risonha. Estela me faz uma inveja. Ou uma ternura.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Carbono e pecados

Não é outra coisa além disso: o amor dos fracos. Eu poderia inventar mil outros nomes e infinitas outras explicações, mas tudo isso é exatamente onde a ternura fraqueja, balbucia segredos lindos e vontade infinita de "pra sempre". Então ela escolhe a traição. Eu digo "ela", porque falar "dela" é sempre mais fácil do que falar de mim. "Ela" se chama agora Estela, acabou de ganhar um contorno nada delicado e infinitamente bronzeado: Estela está totalmente tomada de fogo e sol. Conhece algumas melodias, entende de carros, sabe de coisas que meninas geralmente desconhecem - porque não faço de Estela uma mulher comum. Aliás, é uma mentira agora o que acabo de contar: ela, feita de minha imaginação, também nasceu de carbono e pecados - porque tenho resquícios cristãos em minhas veias. E Estela, ah, Estela é uma tola, esta é a verdade. Eu poderia ser mais gentil, mas não quero. Acordei hoje sem muita gentileza e incapaz de carinho e, assim sendo, nada digo além da fraqueza dela. O último homem não tinha nome, ou acho que ela mal se lembra do nome. Não, eu não a julgo. Ou não a julgaria, se não soubesse a fundo tudo o que a levou a se meter exatamente com essas coisas assim: amores breves, alguns brutos, outros insossos, depois a cama quente e abandonada, e ela representando ardentemente o papel de mulher ardente, não tão bela mas de atrativos indiscutíveis, indiferente e viva, de tanta astúcia e nenhuma serenidade. Não, eu não a julgo. Ou eu a julgo, sim, porque sou das mais péssimas e tento agora inventar motivos ocultos para a liberdade ativa e para o prazer vivo de Estela. Acontece que, antes de inventá-la, eu havia inventado a ternura, começado a crer no amor e a serenizar em meio a ilusões comuns a todas as moças que esperam no portão. Então Estela nasceu aqui dentro, feito tempestade e se fez toda em mim como se quisesse me ensinar sua força. Ou o amor dos fracos.

De que é feita Estela, além de carbono e dos pecados meus?

domingo, 12 de agosto de 2007

"Memórias de minhas putas tristes"

Ao homem do silêncio,

Quero contar como andam as sensações. Repara que escrevo sob a luz de muitas velas e aguardo docemente a chegada do próximo: dar-me-á um anel de rubi lindíssimo e contará coisas do passado. Eu nasci para isso, meu caro: para fazer bem aos desejos dos homens. Mais tarde, eles voltam para seus lares e lá são felizes sob o tédio do amor e do teto. Eles vêm a mim, que sou chuva quente, molham-se felizes feito meninos pulando em poças d´água e em meu ventre fazem todo o estrago que não ousam fazer em seus mundos. Pobres moços.

Eu, quando menina, brincava na chuva em poças lamacentas e era uma delícia abandonar meu teto para me lambuzar lá fora. À noitinha, para não adoecer demais, voltava feliz feito um passarinho e alegremente levava bronca de minha tia, tomava meu banho e ia pra cama. Eu tinha um cobertor delicioso e agora tenho mãos ágeis na escrita que se alegram ao escrever a ti, meu amigo. Desenho toda a vida para que se passe diante dos teus olhos, e só faço isso porque és um bom homem: dos melhores. É por pudor e por carinho que não ofereço a ti o que ofereço aos outros: nasceste para o amor e para ouvir melodias vindas do céu. Eu, ah, eu sou lá de baixo: perdoa-me se digo assim tão feio. Mas, sim, sou do vermelho ardente que corre lá embaixo, sou mais baixa que o poço mais fundo e conheço todas as cores do fogo. Cada cor tem um nome que eu crio, tal e qual as tonalidades de branco para quem conhece o colorido da neve.

Vejo-te em teu silêncio e sei que teu fogo é rubi, é um fogo nobre que aguarda uma fada. Fadas nem sempre surgem, são como unicórnios: feitas de lendas e sonhos. Caso surja, porém, quero que saibas que sou sempre feliz por ti e grata pela tua atenção. E festejarei tua felicidade como se Deus estivesse me perdoando até o infinito de meus pecados.

Sê feliz, mais que o mundo.

Maria Eunice

terça-feira, 7 de agosto de 2007

A bruxa

Porque foi nas pequenezas que ela se inventou mulher, e pequenamente se alimentou de ciúmes doentes e de vitórias mesquinhas: ganhou um beijo, um prêmio, a medalha na escola, o sorriso mais lindo do mundo, aprendeu a fazer crochê e a se despir bem devagar com ares de pouco caso.
Desde então, mulher pronta que era, amou direitinho e exigiu amor como uma canibal que deseja do outro a carne, o sangue e os ossos moídos. E moía os ossos, mas bem de mansinho, como se fizesse carícias e como se sentisse dor. Moendo, pedia um anel e massagens nos pés , bebia o sangue e delicadamente temperava a carne com suor, lágrimas e gozo. Ardendo, levava-o ao fogo e pedia que esfriasse um pouco, regava com choro os dias felizes e amargava na língua um gosto de morte. Rogava a Deus eternidade; ao demônio, pedia domínio. E, vestida de anjo, dominava e amava num fogo eterno, devorando para sempre a carne, o sangue e os ossos que já se tornavam pó.
As bruxas dos contos de fadas sempre foram de comer criancinhas e de maltratar donzelas. A minha era uma donzela infantil que inventava feitiços pra devorar um homem. Em chamas cintilantes de fada.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

A desenhista

A dificuldade se dá quando a mulher se põe a desenhar o homem. Vê-se, assim, a fantasia abandonando o espelho e inventando formas outras. Formas quentes? Ponho-me silenciosa agora: sei de coxas, cintura, seios e delicadeza. E sei de pêlos que douram em poesias antigas feitas para damas sublimes. Acontece que hoje não sou dama sublime: sou a agonia de todo o feminino primitivo que escorre de mim e que escorrerá pra sempre mesmo na velhice, mesmo na feiúra, mesmo na tristeza, mesmo quando se forem o viço e o riso, e amém. Sou hoje quem olha e se coloca na árdua tarefa de desenhar o homem: porque ele tem formas de contenção e força e movimentos de avidez infantil. Ele se desenha no silêncio da distância e provoca amor porque tem um corpo que exige. Eu amo um corpo que exige como quem ama a natureza em sua forma mais simples. Desfaço-me da sofisticação que o feminino inventa e me apego à beleza viril que não me cabe, jamais caberá. Amo os detalhes e o todo e sei que mesmo depois de velha meus olhos ainda brilharão. É de saber que mesmo na velhice os olhos ainda são de mulher que eu estremeço toda, de medo do futuro. E me esqueço, mais uma vez, de completar o desenho.