terça-feira, 25 de setembro de 2007

Rastreando

Estela conhecia os rastros dele: cheiravam a qualquer coisa misteriosa que deixava saudades antecipadas. Estela já havia sido menina e, na timidez de existir, já havia guardado no coração todos aqueles gritos que a sufocavam ventre abaixo. Era de não apagar completamente a menina que Estela ainda conseguia fazer chover em segredo no quarto: e chovia cinza. E, quando se esquecia de que o puro e simples balanço de quadris era sexo vivo, agarrava-se às imagens da TV e suspirava sozinha por não ter vida de filme e corpo de estrela. Eu caminharia ao lado de Estela pra contar a ela aquilo que foi esquecido, mas isso não adiantaria: em dias assim, Estela é menina e mulher no sentido duro e opaco do termos - e se veste de flores pra esconder a carne. E naquele dia aspirava os odores da poeira dele, precisava dele, de flores e de chuva fina. Cabia perfeitinha num colo feito pra dormir.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Da outra

Seria bem possível dizer o seguinte: ela o amava. Estela entortava-se toda tentando tornar sua beleza mais incomparável, oferecia as mãos e as papilas - e degustava, degustava, degustava. Sei que eu não a deveria ter conhecido tão bem - era preferível antes, quando ela aparecia toda firme e praticamente nascida para os gritos e para o amor. Acontece, no entanto, que ela me veio esses dias contando segredos de mulherzinha. Segredos de mulherzinha, sabe como é? De falar de amor baixinho, ter inveja dos cabelos mais delicados da outra e sentir ciúmes da parte dele que desejaria um anjo. "A outra" - Estela me falava baixinho - "eu nem sei se existe." Mas que dançava nos sonhos dela, ah, dançava. Estela amava a outra dançante ao infinito - e como era casta a dança -, delirava perdida nos cabelos dela e jurava, então, que tomaria aquela delicadeza toda para si. Devoraria a outra. Porque Estela bem sabia: ciúme não é ódio, é amor. E, de amar a tal moça, dava-lhe um nome e mil segredos lindos. De amá-la, imaginava-a incapaz de errar o ponto do arroz e chorar sem motivos. Seria bem possível dizer o seguinte: Estela o amava, e amava a idéia de que ele desejasse a outra. Amava tanto que se fez a outra, buscou mais delicadeza nos cabelos e nos gestos, fez um silêncio e se reinventou uma dama. Estela não é exatamente a mesma de antes. Mas ainda seduz. Ainda grita. Ainda canta.

sábado, 8 de setembro de 2007

Dos galopes

Pois na cortina desenhavam-se os gritos de Estela, gritos galopantes, arfantes, gritos janela afora, cidade adentro, estilhaçando ouvidos entediados de tardes comuns, ecoando desejos de adoráveis meninas honradas que também almejavam fazer amor à tarde espalhando impurezas doces pelo ar cinzento. Estela era a mulher sonhada pelas moças de fitas vermelhas, fêmeas delicadas e vorazes que guardavam em si cores de verão e cheiros de orquídeas, era um urro de amor e fantasia, Estela era vida, e era amante, e pedia ao seu homem mais um pouco de pecado, mais um pouco de santidade - não porque acreditasse em pecado ou em santidade, mas porque, primitiva que era, adorava brincar com as invenções modernas, e brincava toda cheia de pureza e alegria, toda plena de carne e vigor. Estela, as moças de fita vermelha e o silenciar brutal das vozes muito humanas: porque era uma tarde quente feita para que os gritos proibidos rachassem os pudores e inventassem o amor.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Estilhaços

Estela faz estilhaços. O que são estilhaços? Estilhaços são coisas que Estela faz às quatro horas da manhã. "O amor é quando a gente se encosta e pensa que vai morrer?" - pergunta ela, e todo seu corpo é sempre prestes a morrer. No dele. Acontece que há uma vida diferente e um segredo, há a delicadeza de compreender a velhice tão antes, Estela compreende as coisas antes. E, antes mesmo de ser mulher, já treinava os passos - não no óbvio de usar salto alto da mãe, mas na fluidez perigosa dos sonhos, na imaginação da entrega, num certo horror inexplicável. Era um horror inexplicável ter nascido para ser fêmea, e Estela era mulher e fêmea e era também aquela criatura assustada que compreendia a velhice bem antes. Sussurrava a dor dos outros e estilhaçava de madrugada. Guardava a sensibilidade viva de uma menina comum. Mas, enquanto ele ainda estava ali, era fêmea em amor e carne, e tinha o mesmo olhar sem compaixão - aquela coisa terrível que era o olhar de quem não ama. Acontece, no entanto, que amava.

Ama e faz estilhaços.